quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Essencialmente bons e maus

Na Ilustração a deusa nórdica Hella, deusa do submundo conhecido dentro da mitologia como Helheim, para onde vão os mortos. A deusa em si tem um lado belo e um lado sombrio.

"A arte do guerreiro é equilibrar o terror de ser um homem com a maravilha de ser um homem." - Carlos Castañeda

Estava eu aqui novamente tentando pensar a respeito do inverno, a respeito dos atos, sobre se somos essencialmente bons, ou essencialmente maus, se certos sentimentos são permissíveis a alguns e não a outros, estava me colocando a pensar na variedade do ser, dos “nós”. Estava pensando nas ações e nos eventos que delas resultam. Estive observando as pessoas, li num blog um autor que estava falando que certos psicanalistas vêem pênis por toda a parte nos símbolos oníricos e nos comentários do mesmo artigo, tinha um profissional da área defendendo o ponto de vista do Freud e o outro psicanalista citado no artigo do rapaz, dizendo que naquele tempo era o que eles tinham, dizendo que o grande problema não era basicamente ver pênis por toda a parte nos símbolos oníricos, que o problema era a escória da sociedade que adorava Raul Seixas e vivia transgredindo leis ou tentando viver como ele viveu. Tentando agredir o autor do blog pelas suas preferências e claro, porque discordava do ponto de vista dele.

Então eu penso: “Não é o que pensamos que nos torna qualquer coisa, não é o que pensamos que faz com que tomamos um lado ou outro, não é o que pensamos que faz com que defendemos uma coisa e atacamos outra, são as nossas convicções que nos impulsionam a fazer isso”. Será que algum deles estava com medo de estar errado ou de admitir que o outro poderia estar certo? Vejamos...

Eu converso com uma amiga, que está com um sério problema, não falarei do problema dela em específico porque isso não diz respeito a ninguém, mas podemos dizer que ela está basicamente de cara com a morte. Então, me contou que sonhou que estava recolhendo ossos na noite anterior. Eu pensei, seja como for, ela está tentando resgatar aquela força interior que há tanto tempo residiu na escuridão do inconsciente dela, tentando pegar os restos, aquilo que restou de si mesma para trazer à vida. Então, há algo que ela diz que me chama atenção: “No final eu estou bem, estou como se me sentisse numa capsula, eu sei que tudo o que está acontecendo são conseqüências das coisas que eu fiz e eu tenho que lidar com isso de qualquer jeito. Sem lamentações para o momento. Sinto-me estranha de todo modo, em outro momento isso me deixaria desesperada, mas agora eu só tenho em mente que isso é resultado de tudo o que eu fiz e tenho que resolver”.

No Odinismo nós damos o nome a essa onda de eventos de Wyrd. Wyrd não se trata de destino, mas das conseqüências de nossos atos, ele diz absolutamente que é exatamente aquilo que estamos fazendo hoje que determinará como será o nosso amanhã. E pensar nisso é angustiante de toda maneira, imagine ter de estarmos completamente atentos com cada palavra falada, com cada ato, com cada sentimento, com cada pensamento. Wyrd é basicamente como muito bem descreveu Saramago no Ensaio Sobre a Cegueira:

A culpa foi minha. chorava ela, e era verdade, não se podia negar, mas também é certo, se isso lhe serve de consolação, que se antes de cada ato nosso nos puséssemos a prever todas as conseqüências dele a pensar nelas a sério. primeiro as imediatas. depois as prováveis, depois as possíveis, depois as imagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar. Os bons e os maus resultados dos nossos ditos e obras vão-se distribuindo, supõe-se que de uma forma bastante uniforme e equilibrada, por todos os dias do futuro, incluindo aqueles, infindáveis, em que já cá não estaremos para poder comprová-lo, para congratular-nos ou pedir perdão, aliás, há quem diga que isso é que é a imortalidade de que tanto se fala.”

De todo modo é sempre impossível prever. Nunca sabemos que interpretação o outro pode dar a qualquer ato nosso, pois nunca conseguimos ser impessoais. Toda a leitura que nós fazemos do mundo é profundamente pessoal, individual e intransferível. E aqui cabe porque eu quis falar primeiramente da convicção dos dois terapeutas anteriores. A convicção tem um quê de resistente. Existem certas crenças pessoais que não abrimos mão, mesmo quando estamos certos de que elas não estão nos fazendo bem, quando ela só está nos levando viver à vida do modo mais difícil. Embora haja de se pensar qual deveria ser o modo fácil. De todo o modo, vejo pessoas defendendo morais, defendendo conceitos a preço de sua própria felicidade, de seu próprio bem estar.

Estava a pensar que estamos tão programados a evitar as coisas ruins, que nem nos damos conta que muitas vezes o simples ato de evitar dá inicio as coisas ruins. Somos criados de tal maneira que estamos todos com medo, estamos todos com medo do que queremos ou desejamos, estamos envergonhados do que somos, do que pensamos, do que desejamos, estamos constantemente vivendo num estado de tensão louco. E estamos constantemente tão rígidos, com tanto medo de sermos descobertos, com medo se seremos rejeitados, humilhados, vitimizados, hostilizados, que estamos constantemente lutando para evitar qualquer tipo de contato com aquilo que uma autora muito sabiamente nomeou de “não-belo”. Estamos numa corrida louca atrás do prazer, do bom, do correto, do belo e tudo o que parece sair do que é “bom”, nos deixa completamente aterrorizados e desesperados. Então, lutamos, lutamos para defender nosso ponto, para defender as nossas convicções, para manter a persona, para não perdemos um bocado de comida, ou de prazer, ou de qualquer coisa que nos mantenha acomodados em nosso mundinho convencional e confortável, por mais infeliz que possamos estar com isso.

Porém tudo tem o seu tempo. Quando estamos vivendo o inverno interior, percebemos que às vezes parece ser uma época totalmente irritante, tudo está recuado, é a morte que está a dançar por todos os lugares, é o frio que nos mantêm presos em casa tentando nos manter aquecidos, é a lentidão das horas, a escuridão dos dias e das noites, a feiúra, o desprazer, a necessidade de ter que lutar ou fazer muito esforço para sobreviver. No inverno é quando nós vemos a Morte batendo em nossa porta e nos lembrando que na natureza tudo é cíclico, que é necessário morrer para nascer, que isso faz parte do ciclo vida-morte-vida. Assim como é a natureza, cíclica, assim nós também somos. Nossa racionalidade e genialidade nos fez acreditar que estamos apartados da natureza, que somos um bando de alienígenas que em forma de espírito tomamos um corpo e estamos aqui apenas de passagem. Mas, não é assim, nossa psique, nossa alma, seja lá que nome você gosta de dar a isso, não está apartada da natureza. Não importa o quão cheio de nós mesmos nós estamos, não importa o quanto estamos numa corrida maluca atrás do que é agradável e só do que é agradável, o inverno sempre irá se apoderar de nós quando for o momento e a Morte virá bater em nossa porta com sua cara feia e dizer “Oi”.

É necessário fins para os novos começos, é necessário encarar o feio para se encontrar o bonito, é necessário passar pela noite para vermos o nascer do sol. Preocupa-me essa loucura generalizada no qual todos nós estamos submetidos. Essa busca desenfreada pelo que é bom e agradável, essa loucura de que temos de aceitar o bem e negar o mal. Essas ações estão simplesmente mutilando nossa humanidade. Nossa totalidade é uma dança de bem e mal, masculino e feminino, luz e trevas, feio e bonito. E é dolorido olhar para o mundo e perceber que essa fixação pelo que é agradável e só pelo que é agradável é que norteia nossos comportamentos. Quando estamos cheios dessa fixação, achamos que temos o direito de ferir uma pessoa que errou com a gente, porque só nós somos o correto, em nossa loucura, achamos que temos o direito de julgar as outras pessoas que não se adéquam a sociedade e a moralidade implantada só porque estamos convictos que assim que tem que ser. Não conseguimos perceber que enquanto estamos tão obcecados pelo que é agradável, nossos olhos só conseguem focar no que é desagradável, justamente porque estamos morrendo de medo de ter que encarar o desagradável batendo a porta ou a Morte. Estamos apavorados e queremos ter o controle de tudo, mas não podemos ter esse tipo de controle.

Não há uma receita, embora milhares de livros estejam aí pra te dar alguma pista. O inverno chega para todos, a morte vem para todos, os fins também vem para todos. Mas isso não é ruim, apenas cíclico. Nós reagimos bem e aceitamos estação invernal quando ela chega pra nós, sabemos que não podemos fazer nada contra o clima, contra a baixa temperatura, nós nos recuamos, fechamos nossas casas, procuramos as bebidas quentes, tentamos nos manter aquecidos o máximo que pudermos, nos agasalhamos, queremos dormir até mais tarde, preferimos ficar dentro de casa. Ninguém tem vergonha porque está com frio. Ninguém também deveria ter vergonha porque está vivendo um inverno da alma, porque todos nós o vivemos. Todos nós encaramos fins e recomeços, dores e alívios, tristezas e alegrias, erramos e acertamos, é inerente ao ser humano. Isso é nosso e é nosso direito conviver com isso. Quando passamos a aceitar o próprio mal, o próprio “não-belo” que temos dentro de nós, conseguimos aceitar isso nos outros também. Não iremos querer matar o outro só porque errou ou fez algo que julgamos errado, só desejamos matar o outro por um erro cometido, quando também desejamos matar a nós mesmos por cometermos os mesmos erros. Mas quando nossa convicção não é mais a de se estar certo ou de se evitar o “não-belo”, quando aceitamos isso dentro de nós mesmos, então conseguimos aceitar isso nos outros, as pessoas deixam de ser tão irritantes, porque nós não estamos mais tão irritados com nós mesmos. E a isso alguns dão o nome de transcendência, mas não passa de um movimento de auto-aceitação.

Os outros são exatamente aquilo que nós projetamos. Ninguém é impessoal. E o universo como nós o vemos é apenas uma visão pessoal que temos dele, e, ela é mutável, desde que estejamos dispostos a aceitar o bem e o mal dentro de nós mesmos, de nos acolhermos verdadeiramente nos nossos invernos pessoais e procurarmos nos aquecer, ao invés de tentarmos evitar isso a qualquer preço, só porque nosso inverno interior poderá nos mostrar que não somos belos, ou bons ou tão perfeitos quanto gostaríamos. Quando abandonamos nosso desejo insano de perfeição, então podemos viver em paz na nossa completude. Quando o inverno acaba, sempre se segue a primavera com as suas novidades e seu pulsar de vida. Os altos e baixos, os feios e belos, são inerente a nossa natureza. Somos essencialmente bons e maus. A luta do bem contra o mal é o foco da moralidade. Talvez seja um grande passo conseguirmos parar de lutar. O cão não ladra por valentia e sim por medo – provérbio chinês.

Ainda Saramago: “O medo cega, disse a rapariga dos óculos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegamos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos.”

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